Guia completo sobre Intertextualidade

Neste artigo vamos aprender um pouco mais sobre intertextualidade. Quem deseja escrever um texto dissertativo que seja muito bem avaliado, seja no Enem ou no vestibular, não deve deixar de lado este recurso. Além de fundamentar melhor o que se diz, além de permitir referências que dão credibilidade aos argumentos, demonstra maturidade do candidato e uma bagagem cultural importantíssima num exame em que (link→) a redação dissertativa vale 1000 pontos.

intertextualidade redação enem gabarito nota 1000 

"Todo texto é um intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, sob formas mais ou menos reconhecíveis."

Roland Banhes. In: CHARAUDEAU, Patrick;
MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004. p. 289.

intertextualidade-pintura-enem

Pai João
A filha de Pai João tinha um peito de
Turina para os filhos de ioiô mamar:
Quando o peito secou a filha de Pai João
Também secou agarrada num
Ferro de engomar.
A pele do Pai João ficou na ponta
Dos chicotes.
A força de Pai João ficou no cabo
Da enxada e da foice.
A mulher de Pai João o branco
A roubou para fazer mucamas.

LIMA, Jorge de. Pai João (fragmento). In: Poesia completa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. v. 1. p. 110.

1. Observe atentamente as duas pinturas, os títulos e as datas.

a) Como se dá o diálogo entre elas?

b) Como se dá o diálogo entre as telas e o poema?

2. Em relação às telas:

a) Qual é a provável atividade da personagem retratada por Tarsila do Amaral?

b) Como poderíamos interpretar as pernas cruzadas da personagem retratada?

c) A negra é considerada a primeira pintura efetivamente moderna realizada por um artista brasileiro. Foi esboçada e concluída em 1923, quando Tarsila do Amaral estudava pintura em Paris. É, no entanto uma obra tipicamente tropical. Que elemento da tela reforça essa ideia?

3. Considerando que turina é denominação da fêmea de uma espécie de gado bovino leiteiro, que ioiô era o tratamento que os escravos davam ao senhor branco e que mucama designava a escrava jovem, ama de leite, que denúncia faz o poema do alagoano Jorge de Lima?

4. Considerando que o texto literário é fruto de uma especial seleção e arrumação das palavras, releia os dois últimos versos e:

a) reescreva-os colocando os termos na ordem direta;

b) comente o efeito obtido pelo poeta com a ordem escolhida por ele.

Todo texto é um hipertexto?

A produção de textos está intimamente ligada à leitura, pois encontra nela sua fonte e seu objetivo, considerando-se que um texto só cumpre sua função se alguém o ler. Assim, o círculo que envolve a interação pela linguagem se constrói apoiado no já dito, no já lido e no já conhecido, podendo reiterá-los, reafirmá-los, reformulá-los, refutá-los.

É muito difícil pensar em um texto totalmente inédito, criado a partir do nada. É como se todo texto fosse um hipertexto que possui links explícitos ou implícitos com outros. O fenómeno da intertextualidade pode se dar entre diferentes tipos de textos de uma mesma linguagem (entre um artigo e um poema, por exemplo) e entre textos de diferentes linguagens (como um romance e um filme).

Vejamos um caso muito interessante: Cartola (1908-1980), um dos fundadores, em 1928, da Estação Primeira de Mangueira (de nome e cores - verde e rosa - escolhidos pelo sambista carioca), lança, em 1977, a música "Verde que te quero rosa", que deu título ao álbum.

Verde como o céu azul, a esperança
branco como a cor da paz a se encontrar
rubro como o rosto fica
junto à rosa mais querida
É negra toda tristeza
se há despedida na avenida
É negra toda tristeza desta vida
É branco o sorriso das crianças
São verdes os campos, as matas
e o corpo das mulatas
Quando vestem verde e rosa é Mangueira
É verde o mar que me banha a vida inteira
Verde que te quero rosa, é a Mangueira Rosa que te quero verde, é a Mangueira

CARTOLA. Verde que te quero rosa. In: Verde que te quero rosa (CD).RCA/BMG,2001.f. 1.

"Verde que te quero rosa" remete a um conhecido verso de Federico Garcia Lorca. É uma marca de intertextualidade. Leia:

Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco vai sobre o mar
e o cavalo na montanha.
Com a sombra pela cintura
ela sonha na varanda,
verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Verde que te quero verde.
Por sob a lua gitana*,
as coisas estão mirando-a
I e ela não pode mirá-las.

* gitana = cigana

LORCA, Federico Garcia. Antologia poética. Rio de Janeiro: Leitura, 1966. p. 53.

Como você percebeu, "Verde que te quero verde" é o primeiro verso desse poema, e a reiteração da palavra verde dá o tom que vai contaminar, "tingir", as imagens subsequentes: verde vento,,verdes ramas, verde carne, tranças verdes.

Cartola não só se apropria do verso de Lorca, da cor verde tingindo tudo, como lhe acrescenta o rosa. O sambista sugere então um "tingimento" verde e rosa, fazendo alusão à Mangueira.

São inúmeras as relações de intertextualidade. Vamos nos deter em três casos abrangentes:

Intertextualidade estrutural

Consiste no emprego de modelos de estrutura preexistentes para a produção de textos. Por exemplo:

  • receita → enumeração de ingredientes + preparação;
  • gibi → sequência de quadrinhos com as falas dos personagens em balõezinhos;
  • soneto → poema composto de dois quartetos e dois tercetos.

Intertextualidade temática

Consiste na abordagem de um mesmo assunto. Por exemplo:

  • duas telas que retratem uma paisagem marinha; uma tela que retrate uma paisagem marinha e um texto que descreva uma paisagem marinha;
  • um filme e a crítica do filme;
  • dois romances que tratem do mesmo tema, como o Ateneu, de Raul Pompeia, e Doidínho, de José Lins do Rego, que abordam a vida de meninos em colégio interno; ou de Dom casmurro, de Machado de Assis, e São Bernardo, de Graciliano Ramos, que abordam o ciúme e o pretenso adultério.

Intertextualidade referencial

Consiste na citação de outros textos ou alusão a eles. Por exemplo:

  • Freud denominando a inclinação erótica de um filho pela mãe de "Complexo de Édipo", numa referência à tragédia grega Édipo Rei, de Sófocles;
  • Oswald de Andrade citando Freud no Manifesto Antropofágico: "Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa.".

Conhecimentos prévios

as cobras - intertextualidade redação do enem

O que nos leva a identificar o texto acima como tirinha? A sequência de quadros, os desenhos e os balões com as falas compõem basicamente o "modelo textual" tirinha, É por conta dessas características que a reconhecemos como tirinha ou história em quadrinhos (HQ), Logo, a tirinha acima dialoga com todas as outras preexistentes a ela. Você já parou para pensar que, se pedissem a você que criasse uma HQ, você seguiria o modelo?

Essa tirinha, em especial, está centrada numa releitura (fato evidente no título da série: Neo-Robin Hood, em que neo corresponde a novo). Podemos dizer que o texto acima dialoga com outro texto porque, no momento da leitura, automaticamente acionamos conhecimentos prévios sobre outro texto: "A lenda de Robin Hood, o príncipe dos ladrões", seja porque nos contaram a história, seja porque assistimos a um filme, seja porque lemos sobre a lenda, seja pela caracterização de Robin Hood (tipo de chapéu) etc.

A tirinha, além de fazer a ponte com o texto (ou textos) sobre Robin Hood, também o transfigura: trata-se de um Robin Hood às avessas! Ao contrário do "original", este rouba dos pobres para dar aos ricos, provocando estranhamento e humor.

Quem desconhece o texto "original" faz uma leitura limitada. O reconhecimento das interconexões entre os textos possibilita uma leitura mais ágil, efetiva e rica. Quanto mais amplo for o repertório do leitor, mais plena será sua leitura, por identificar essas interconexões e avaliar as intenções dos autores ao lançarem mão delas.

Castro Alves, em seu famoso poema "Navio Negreiro", assim descreve o horror vivido pelos escravos durante a viagem da África ao Brasil:

Era um sonho dantesco...
O tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho,
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar do açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Qual o significado do adjetivo dantesco no verso do poeta baiano? Para uma melhor compreensão, reproduzimos partes do verbete dantesco, do Dicionário Eletrônico Houaiss:

dantesco
- adjetivo
1 relativo a Dante Alighieri (1265-1321), poeta italiano considerado precursor do Renascimento ("movimento"), ou a sua obra; dântico
1.1 próprio do estilo ou das cenas do Inferno de Dante [Primeiro dos três poemas que compõem A divina comédia, caracterizado por uma descrição angustiante e terrível dos suplícios infernais.]

2 Derivação: por analogia.
de grande horror; diabólico, medonho, pavoroso.

HOUAISS, António. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão 1.0.5a. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.

Como se observa, Castro Alves refere-se ao poema A divina comédia, de Dante Alighieri, recuperando a descrição que o poeta italiano faz dos horrores, dos sofrimentos daqueles que padecem no inferno, e associando-a aos horrores vividos pelos negros nos porões dos navios negreiros. No entanto, Castro Alves não menciona diretamente o poema; cabe ao leitor concretizar essa relação, ou seja, estabelecer o diálogo entre os textos, primeiro relacionando o adjetivo ao poeta italiano, depois recuperando as passagens do poema que serve de intertexto. Trata-se de um caso de intertextualidade implícita.

Se o poeta baiano tivesse escrito: "Era um sonho que lembrava o Inferno de Dante Alighieri: “Gritos, suspiros, prantos lá encontrei / que ecoavam no espaço sem estrelas, / pelo que no começo até chorei.”, teríamos um caso de intertextualidade explícita, com citação da fonte.

Como já se pode perceber, são riquíssimos os diálogos entre textos (e, ao longo deste volume, seja na exposição teórica, seja em questões, serão analisados variados casos de intertextualidade).

O conhecimento das relações entre os textos - e dos textos utilizados como intertextos - é um poderoso recurso de produção e apreensão de significados. Quando um determinado autor recorre a vários textos para compor os próprios, certamente tem um motivo muito claro - entre outras coisas, fazer uma crítica, uma reflexão, uma releitura desses textos. Percorrer o caminho inverso, ou seja, buscar esse motivo e reconstruir o processo de produção leva a desvendar os significados específicos do texto produzido, já que os textos se completam, lançam luz uns sobre os outros.

Esse conhecimento, porém, não se dá por acaso nem por obra da intuição, mas por meio de um trabalho bastante específico: o exercício da leitura. Quanto mais experiente for o leitor (entenda-se como leitor experiente aquele que leu muito e bem), mais possibilidades terá de compreender os caminhos percorridos (e os textos visitados) por um determinado autor em sua produção e de percorrer o próprio caminho em suas criações.

Portanto, nossos processos de leitura podem ser mais proveitosos quanto mais caminhos de leitura tivermos percorrido. Nossas produções podem aprimorar-se na medida em que incorporamos essas leituras a nossos textos. E não é exagero dizer que esses procedimentos ampliam-se de tal forma que atingem uma outra área, bem mais ampla - a que diz respeito à própria leitura do mundo.

A intertextualidade como reiteração ou como subversão

A intertextualidade, assim como outros elementos que constituem um texto, deve ser analisada com base na intenção do produtor do texto: quando se constrói a ponte entre dois textos, desloca-se significação de um contexto para outro e acrescenta-se algo, seja para reiterar, reafirmar, seja para negar, para subverter uma ideia, um conceito, uma posição ideológica.

Exemplificando e retomando a famosa "Canção do exílio": o poeta romântico Gonçalves Dias escreveu o poema em 1843, na época em que cursava Direito em Coimbra. Impregnado pelo nacionalismo pós-independência, ele exalta a natureza pátria nesse poema.

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossas flores têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

O romântico Casimiro de Abreu, em 1859, também publica sua "Canção do exílio", reiterando o nacionalismo de Gonçalves Dias e acrescentando a angústia de um jovem de vinte anos ante a presença da morte:

Se eu tenho de morrer na flor dos anos
Meu Deus! não seja já;
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!

Quando, em 1909, o poeta parnasiano Osório Duque-Estrada ganha o concurso para a letra do Hino Nacional, recupera passagens do poema de Gonçalves Dias, reiterando a exaltação da natureza e a ideia de nacionalismo:

Do que a terra mais garrida
Teus risonhos, lindos campos têm mais flores;
Nossos bosques "têm mais vida",
"Nossa vida" no teu seio "mais amores".

No outro extremo, vários poetas do século XX questionam e subvertem o conceito de nacionalismo de Gonçalves Dias, como é o caso do gaúcho Mário Quintana:

Minha terra não tem palmeiras...
E em vez de um mero sabiá,
Cantam aves invisíveis
Nas palmeiras que não há.

É isso. Num próximo artigo vocês verão uma série de exercícios sobre intertextualidade, todos eles com gabarito.

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